sexta-feira, abril 26

Linda David, "Do Loreto a Belém"


Linda David


" A filha da minha sogra quer uma mobília de sala, aquela que lá temos tem 32 anos, ela merece, coitadinha, porque se farta de trabalhar, as mulheres trabalham muito mais que os homens. Eu já lhe disse que estamos apertados, eu até podia comprar a mobília de sala, tenho uns dinheirinhos, sempre temos uns dinheirinhos para uma doença, é por isso que não compro mobílias de sala. Agora, por causa dacrise e das rotundas que se fazem por aí o dinheiro é muito mal gasto e as pessoas dormem na rua e ao frio, eu tenho pena delas. Já viu todo este movimento? É porque amanhã é feriado, vai tudo para fora, se eu pedisse ao meu patrão um dia de férias a seguir a um feriado ele mandava-me dar uma curva. Eu vi no dia vinte e cinco de Abril as pessoas na rua, a andar de um lado para o outro, nessa altura ainda não trabalhava no táxi, era marçano de uma mercearia fina, mas o patrão era ruim. Quando casei com a filha da minha sogra vieram logo os filhos e eu arranjei o táxi, criámos os filhos, agora temos um neto, ela insiste na mobília de sala e diz que quando tiver a mobília nova já não tem tempo para a gozar, um dia destes fomos a um casamento e ela demorou a arranjar-se e eu aspirei o corredor, como ela disse que estava tudo mal aspirado nunca mais a ajudo, as mulheres são difíceis de contentar e ele há muita miséria e eu vejo os sem abrigos nos dias de inverno cheios de frio, por aí, por essa cidade, abandonados, nas entradas dos prédios e nos passeios à noite, sempre trabalhei à noite, eu tenho pena deles, é só dinheiro mal gasto e tanta casa abandonada que pertence à câmara e é só gastar dinheiro no que não precisamos, aquela Rotunda do Marquês não serve para nada. Se conseguir ter tempo vou com a mulher ao Ikea dizem que as mobílias são baratas e a mulher ainda se goza da mesa nova e das cadeiras. Bom, mesmo bom, era quando tínhamos os filhos em casa, gastava-se mais água e luz , mas havia sempre alguém para lavar a loiça, agora, sou eu que lavo a loiça, porque só ligamos a máquina quando estamos todos. Felizmente, tenho a casa quase paga, já lá está quem tão bem me aconselhou, que gente boa sempre houve e eu pedi dez mil contos, naquele tempo eram contos, para as minhas sala, os quartos, uma boa cozinha, e casa de banho com banheira como a mulher queria, é interior, mas tem tudo o que precisamos, que isso nunca nos faltou nada, se fosse hoje os bancos levavam tudo e não há quem aguente tanta pobreza e tanta miséria que ainda havemos de passar pior. É já aqui à esquerda, não é verdade? Olhe, muito boa noite e bom feriado para a senhora e para os seus rapazes, sim, eu sei sair daqui, já ando nisto há trinta e dois para trinta e três anos.Daqui a duas semanas tenho férias, vou ver se consigo comprar as cadeiras, a mesa e o louceiro para fazer a filha da minha sogra mais contente, que ela sempre trabalhou muito, mais do que eu. Boa noite, minha senhora e muito obrigada mais uma vez".
(Lisboa, do Loreto até Belém, 24 de abril de 2013)
L.C.D.



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